O direito fundamental à saúde está inserido em um amplo conjunto de questões que envolvem a saúde e o bem-estar, interligando-se com diversos direitos humanos. A saúde não pode ser considerada de forma isolada da vida das pessoas e da sociedade.
Ao considerar todos os direitos humanos fundamentais, a relação com a saúde vai além da redução de vulnerabilidades e riscos. O direito à saúde também abrange violações de direitos, como a violência urbana, a tortura, a escravidão e a violência de gênero, que impactam diretamente a saúde. Além disso, está fortemente ligado ao desenvolvimento da saúde, em conexão com outros direitos, como a participação social e o acesso à informação. Esses elementos são cruciais para a democracia, o exercício da cidadania e a garantia dos direitos fundamentais.
É importante lembrar que o conceito de saúde e do direito à saúde evoluiu ao longo do tempo. A saúde nem sempre foi reconhecida como um direito. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, celebrando seus 70 anos, percebemos que o conceito de saúde é moldado por contextos históricos, políticos, econômicos e sociais.
Direito à Saúde após o fim da Guerra
Logo após a criação da Carta das Nações Unidas, documento que estabeleceu as bases para a formação das Nações Unidas no período pós-guerra, foi fundada a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1946. O principal objetivo da OMS era garantir que todos os povos alcançassem o mais alto nível possível de saúde. A ideia de saúde para todos os povos era considerada essencial para a paz e a segurança global. Entre seus princípios, destacava-se a definição de saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças ou enfermidades. A saúde foi reconhecida como um direito fundamental de todos os seres humanos, independentemente de raça, religião, credo político ou condição econômica ou social. Nos dias atuais, é impossível dissociar saúde das necessidades humanas básicas, como alimentação, habitação e proteção social. Essa visão ampliada de saúde, voltada para o bem-estar social e interligada aos direitos humanos, está claramente refletida no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Esse artigo estabelece uma lista de condições necessárias para garantir a dignidade humana.
Artigo 25 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social.
Avanços do Direito à Saúde Pós-Guerra
Em 1978, a Declaração de Alma-Ata reafirmou a saúde como um direito fundamental e ampliou seu entendimento. Proveniente da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, a declaração pediu por ações internacionais e nacionais para o desenvolvimento e implementação de cuidados primários de saúde em todo o mundo. Com o objetivo de garantir saúde para todos, a declaração destacou a preocupação com as desigualdades de saúde entre diferentes populações, relacionando essas desigualdades ao desenvolvimento econômico e social, e sublinhando a necessidade de uma nova ordem econômica internacional. Diversos outros documentos também ajudaram a reconhecer a saúde como um direito humano. Exemplos incluem a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência de 1975, os Princípios para a Proteção dos Doentes Mentais e a Melhoria dos Cuidados de Saúde Mental de 1991, os Princípios das Nações Unidas para os Idosos de 1991 e a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres de 1993. A visão abrangente de saúde considera os determinantes sociais da saúde, que incluem fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que podem influenciar a saúde. Esses determinantes frequentemente envolvem políticas públicas fora do setor tradicional de saúde, ressaltando que as condições de vida e de trabalho das pessoas também afetam sua saúde.
E no Brasil?
O direito fundamental à saúde no Brasil é fruto de anos de luta do movimento de Reforma Sanitária, que buscou democratizar o acesso à saúde no país. Esse movimento surgiu no início da década de 1970, durante o regime militar, como uma forma de resistência e busca por justiça social. Inspirados pelos novos conceitos de saúde e pela Declaração de Alma-Ata, os ativistas e profissionais da saúde iniciaram debates importantes sobre um novo modelo de saúde pública, culminando na 8ª Conferência Nacional de Saúde (8ª CNS) em 1986. As discussões da 8ª CNS foram fundamentais para a criação da seção sobre saúde na Constituição Federal de 1988. Este documento histórico marcou o nascimento do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, fundamentado nos princípios de universalidade e equidade. Esses princípios foram alinhados ao processo de democratização do país, garantindo que todos os cidadãos tivessem acesso aos serviços de saúde sem discriminação.
SUS: Constituição Federal e Outras Leis
O direito fundamental à saúde está claramente estabelecido na Constituição Federal brasileira, destacando-se no artigo 6º como um direito social. O artigo 23 da CF estabelece que a responsabilidade pela saúde e assistência pública, bem como pela proteção e garantia dos direitos das pessoas com deficiência, é uma competência compartilhada entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Na seção sobre seguridade social, dentro da ordem social, os artigos 196 a 200 fornecem a base legal para o Sistema Único de Saúde (SUS). Esses artigos afirmam que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, detalhando as disposições sobre o sistema de saúde no Brasil.
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
A Lei Nº 8.080, de 1990, regulamenta as ações e serviços de saúde em todo o território nacional, reafirmando a saúde como um direito fundamental do ser humano e reforçando o dever do Estado em garantir esse direito. Esta lei estabelece os princípios e diretrizes para a organização do Sistema Único de Saúde (SUS), enfatizando a universalidade, integralidade e equidade no atendimento à saúde.
Complementarmente, a Lei Nº 8.142, também de 1990, aborda a participação da comunidade na gestão do SUS e a transferência de recursos financeiros. Esta lei estabelece duas instâncias de participação social: as Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde. As Conferências de Saúde, realizadas periodicamente, reúnem representantes da sociedade civil e do governo para avaliar e propor diretrizes para a política de saúde. Os Conselhos de Saúde, presentes em todas as esferas de governo, têm a função de acompanhar a execução das políticas de saúde e garantir a participação efetiva da sociedade na gestão do SUS.